Quem vê o céu na água, vê os peixes nas árvores.
Ilusão Realista ou Realidade Ilusória
A FOTOGRAFIA em Arte-Terapia. Uma Síntese.
A primeira referência ao uso da fotografia num contexto de saúde mental data de 1856. Naquela altura Hugh Diamond proferiu uma palestra perante a Royal Society de Inglaterra, denominada “Sobre a Aplicação da Fotografia à Fisionomia e Fenómeno Mental da Loucura.” Esta palestra vem referida num trabalho editado em 1976 por S. Gilman com o título de “O Rosto da Loucura: Hugh W. Diamond e a Origem da Fotografia Psiquiátrica”.
A fotografia do lado direito, foi tirada em 1850 a uma jovem mulher, paciente do Dr. Diamond, que se encontrava internada num asilo para dementes. A imagem foi posteriormente reproduzida por Elaine Showalter para ilustrar a obsessão sexual de Ophelia (personagem de ficção da obra de Shakespeare).
A popularidade da personagem de Ophelia e a imagem escolhida para a representar eram tão intensas que se fundiram, i.e., esta jovem mulher passou a representar a própria Ophelia, assim este retrato é tirado a esta mulher com flores e folhas no cabelo. No sec. XIX a iconografia romântica de Ophelia era tão mediática, segundo Showalter, que a forma de uma mulher representar a sua ansiedade psicológica era a de imitar a própria Ophelia, ou quando tal não acontecia, os próprios técnicos do asilo fotografavam as “loucas” com os adereços e cenário próprios da personagem. Tal como Óscar Wilde observou “life imitates art”.
O Dr. H. Diamond começou a tirar fotografias 3 meses depois de William Talbot ter apresentado a sua invenção em 1839. Este psiquiatra veio a utilizar o seu hobby na sua profissão, documentando as expressões faciais dos pacientes com perturbações mentais no asilo de Surrey County. Ele utilizou as suas fotografias para fundamentar a sua teoria, de que o diagnóstico dos pacientes se poderia deduzir a partir das suas expressões. Mais tarde, no seu livro “Pequena História da Fotografia”, Walter Benjamin, relataria como os primeiros modelos fotográficos diziam que o fenómeno da fotografia lhes parecia uma “grande e misteriosa experiência”. O candidato a modelo fotográfico, nos primórdios da fotografia, era chamado de “paciente”.
Em 1977, a revista Psychology Today publicou um anúncio convidando terapeutas que estavam a utilizar a fotografia no seu trabalho clínico. Quando mais de duas centenas de respostas foram recepcionadas por aquela edição, então foi lançada a Phototherapy Quarterly Newsletter.
Uma fotografia é um pedaço do tempo que foi congelado para sempre, segundo Judy Weiser.
A fotografia é percecionada tridimensionalmente, como se estivesse viva e existisse naquele momento. O observador está lá naquele espaço e naquele momento retratado pela imagem. É como se o observador estivesse ele a tirar a fotografia. Uma vez que a imagem em cada fotografia é sempre percebida como se fossem os olhos do observador a ver, este nem se lembra que existiu uma máquina a mediar o processo de visionamento. A mente humana não separa o “ver o conteúdo visual de uma fotografia” de “ver os factos visuais em si”. Esta condição empresta uma qualidade de “prova” às produções fotográficas, como se estas fossem uma certeza embora simultaneamente também sejam não verdades.
Assim, uma fotografia torna-se facilmente um objecto transicional servindo de ponte entre realidades sem que o seu observador se dê conta do que está a acontecer. Os observadores automaticamente e inconscientemente atingem o salto cognitivo de equacionar o “ver a fotografia” com o “estar naquela imagem eles próprios”, e, portanto, têm uma certeza interior que a máquina não mente nem podia mentir (porque ela de facto tirou uma fotografia do que estava a acontecer naquele instante, naquele lugar, mesmo em frente à lente). Mas não foi a máquina que tirou a fotografia ….
A fotografia tem a particularidade de ser simultaneamente uma ilusão realista e uma realidade ilusória. Um momento captado ao tempo, mas nunca na sua forma mais pura. As fotografias estão carregadas de emoções e ninguém consegue ver as suas fotografias pessoais desapaixonadamente. O seu significado tem ressonância e esta vem do passado até ao presente. É natural que as pessoas tratem estes pedaços de papel com imagens como se estivessem cheios de vida, chorando-os quando os perdem, enviando-os para outros como representantes/substitutos de si próprios ou criando-os para ocasiões especiais ou pelo simples facto de manter uma situação viva para sempre.
Num processo terapêutico que envolva fotografias, as explicações do paciente sobre o significado de uma fotografia em particular acabam por se revelar menos importantes do que as razões pelas quais aquele significado é atribuído (projeção). Muito se aprende e apreende com a partilha da vertente emocional das fotografias além da sua componente visual. Quando se revêem fotografias pessoais e de família, ou quando se ouvem comentários ou apreciações de outras pessoas sobre aquelas imagens, os clientes frequentemente vêm a conhecer e a entrar em contato com (novos) aspetos de si. Aspetos que mais tarde se tornam óbvios, mas que eram apenas potenciais na altura da paragem do tempo.
Quando comparamos a fotografia com outros mediadores constatamos que a fotografia não é um mediador intimidatório, é familiar, comum. Qualquer pessoa já tirou ou tira regularmente fotografias e o seu acesso a elas é simples. Mostrar fotografias a terceiros e falar sobre elas é uma atividade social praticada há muitos anos.
Desde a ida épica ao fotógrafo da cidade, passando pelos serões ou tardes de visionamento de álbuns de fotografias, até ao presente, onde a publicação de fotografias em inúmeras redes sociais assume contornos de rotina, a fotografia acompanha a nossa vida e a nossa vida revê-se na fotografia. A construção interna que cada pessoa faz de si é o que emoldura a sua realidade.
O que as pessoas acreditam que o mundo é, influenciará e filtrará tudo o que entra e sai da sua mente. Assim, não utilizar o estudo das fotografias que os pacientes tiram, coleccionam, consideram significativas ou produzem através de estímulos inconscientes, é deixar de lado uma quantidade enorme de informação valiosa para o tratamento de cada um. Assim, quando um terapeuta quer trabalhar a auto-estima ou a forma como o seu paciente se apresenta aos outros, encontrará nos auto-retratos e nas fotografias tiradas por outros, instrumentos bastante úteis. Paralelamente, terapeutas que trabalhem as histórias/narrativas de vida (que são utilizadas para a construção da respetiva identidade) também beneficiarão da análise das fotografias de família. Por outro lado, terapeutas que queiram ajudar os seus pacientes a conhecer melhor o que é que os diferencia dos restantes membros da sua família, da sua cultura, ou dos vários estereótipos sociais, também poderão socorrer-se das fotografias pessoais do paciente.
A fotografia, tal como a criação artística produzida pelo paciente, insere-se na relação triangular como mediador entre o mundo interno e externo do paciente bem como entre paciente e terapeuta. Portanto, enquadra-se num campo intersubjectivo vasto e complexo. Neste espaço poder-se-á afirmar que a fotografia auxilia o terapeuta no desempenho da sua função transcendente (simbólica) i.e. conforme Jung definiu como sendo o resultado da interacção entre conteúdos conscientes e inconscientes, permitindo transições suaves entre eles.
Na sua relação com a arte-terapia, convém referir o precioso contributo proveniente da integração das técnicas da fototerapia na arte-terapia. Enquanto que muitos mediadores em arte-terapia focam a sua atenção no mundo interno como conteúdo inspirador para a criação artística, a fotografia coisifica o mundo externo e a sua análise facilita o acesso ao mundo interno.
A perspectiva é partir de fora para dentro enquanto que outros mediadores assumem a perspectiva de dentro para fora. Cada mediador possui as suas particularidades, e, portanto, são essas as características diferenciadoras que permitirão ao arte-terapeuta enriquecer o seu trabalho potenciando reparação, mudança e transformação interior.
Referências Bibliográficas
– Barthes, Roland “A Câmara Clara”, ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984
– Fryrear, J.L., & Corbit, I.E.). “Photo art therapy: A Jungian perspective”. Springfield, IL: Charles C. Thomas, 1992.
– Weiser, J. “PhotoTherapy Techniques in Counseling and Therapy: Using ordinary snapshots and photo-interactions to help clients heal their lives”. The Canadian Art Therapy Association Journal, 2004
– Weiser, J. PhotoTherapy Techniques: Exploring the Secrets of Personal Snapshots and Family Albums), Vancouver: PhotoTherapy Centre Press [ISBN: 0-9685619-0-X], 1999
– Weiser, J. Using PhotoTherapy to help: A study of Debbie. “Montage”: Kodak’s Educator’s Newsletter, 1983
– Weiser, J. PhotoTherapy: “Photography as a verb”. The B.C. Photographer, 1975