A ESTEREOSCOPIA DA IMAGEM
EM ARTE-PSICOTERAPIA
Mª Paula Guerrinha
In Revista Arte-Viva, Out 2017 (texto adaptado)
“O maior erro que se pode cometer no tratamento das doenças é haver médicos para o corpo e médicos para o espírito, quando não se pode separar uma coisa da outra… Mas é precisamente o que acontece. Por isso, tantas doenças lhes escapam. Nunca veem o todo. É a este todo que devem prestar atenção, porque quando o todo se sente mal é impossível que uma parte deste todo seja sã”. (Platão, séc. IV-V a. C.).
A Arte convida a Ciência a olhar para além do cérebro e a refletir sobre o que nos torna sensíveis e (auto)conscientes, pedras de toque de sermos humanos. A nossa vida mental permanece enigmática na teia de redes neuronais, impulsos elétricos e sinapses. O Self já não se encontra na massa cinzenta, como alguns pensadores chegaram a escrever, nem tão pouco parece ter tangibilidade corpórea.
A Estereoscopia é uma qualidade da nossa visão que nos permite visualizar e perceber a realidade na sua tridimensionalidade ou 3D.
A visão tridimensional que temos do mundo é resultado da interpretação, pelo cérebro, das duas imagens bidimensionais que cada olho capta a partir de seu ponto de vista e das informações sobre o grau de convergência e divergência.
Acrescenta a dimensão da profundidade à nossa perceção. A visão estereoscópica advém da natureza ótica da nossa fisiologia, pelo fato de o homem possuir dois olhos voltados para a mesma direção e separados um do outro por uma distância média de 6,5 cm. As duas imagens, uma de cada olho, cada uma processada por um lado de nosso cérebro, forma uma imagem final única e integrada.
Esta imagem final, por se ter originado de duas imagens, uma proveniente do olho direito e a outra proveniente do olho esquerdo, (ligeiramente distintas uma da outra devido à diferença de enquadramento), dá a noção de proporção e profundidade.
Além de imagens, o cérebro coordena os movimentos dos músculos dos globos oculares e recebe informações sobre o grau de convergência ou divergência dos eixos visuais, o que lhe permite aferir a distância em que os olhos se cruzam num determinado momento.
Estas diferenças entre imagens geradas pelo olho direito e pelo olho esquerdo são processadas pelo cérebro dando-nos uma noção tridimensional, e, com isto, tem-se a ideia de imersão num ambiente com objetos posicionados a distâncias diferentes. É o cérebro que faz a fusão das duas imagens (uma para cada olho) integrando uma com a outra numa imagem única.
O conceito de estereoscopia consiste na propriedade de vermos uma imagem de dois pontos de vista ligeiramente distantes um do outro, os nossos olhos assim o fazem automaticamente. É devido a esta diferença de enquadramento, ou perspetiva binocular tridimensional, que o observador sintetiza no cérebro as duas imagens e reconfigura o espaço que observa, podendo perceber relevo, distância e volume.
A física clássica descreve o espaço em três dimensões, i.e., qualquer movimento pode ser decomposto em três componentes: cima/baixo, direita/esquerda e frente/trás.
É possível graças a algumas técnicas proporcionar a ilusão da tridimensionalidade numa representação bidimensional.
Perspetiva: permite a noção de um objeto estar mais longe ou mais perto através da relação com o tamanho. Sabe-se que quanto mais longe o objeto estiver, menor ele parecerá.
Na imagem os dois objetos sólidos parecem ter o mesmo tamanho, mas visualizando os traços de perspetiva e o ponto de fuga dado por estes, distingue-se que o objeto à esquerda é maior.
Iluminação: permite estimar o volume dos objetos e a relação destes com o ambiente.
Oclusão: verifica-se quando há um objeto sobre outro. Obtém-se uma falsa impressão de que o objeto que está por cima está mais próximo do observador.
Sombra: para existir sombra, fisicamente deve existir luz. A sombra também transmite uma visão espacial do que se está a visualizar. Por exemplo, a sombra de um objeto sobre outro, mostra-nos qual é que está mais próximo do ponto de luz. A sombra separada do objeto passa a sensação (é percecionada) de estar afastada da pele.
Gradiente de textura: quando se aplica uma textura num objeto ou ambiente, têm-se a noção de profundidade. Quanto mais distante, menor fica o padrão de repetição da textura.
Em Arte-Psicoterapia “uma maça” na realidade pode ser sentida e vivida como “a maça”. Essa maça específica, recordada por nós, oriunda na memória de um tempo, mais ou menos ocorrido ou que ainda irá ocorrer. Lembrar uma maça em particular, quer seja a que costumava apanhar na infância, como aquela que hoje de manhã vi no mercado ou aquela que irei comprar no fim de semana. A imagem despoleta na nossa mente vários referenciais simbólicos.
O encontro entre a Imagem e a Mente, a Arte e a Ciência, revela um espaço de curiosidade, perplexidade e espanto. A imagética em arte-terapia/psicoterapia apresenta uma profundidade de significação simbólica forte, mais ou menos consciente. O processo criativo é um processo de entrega e simultaneamente de conflito, com o próprio Eu, e com os mediadores artísticos.
Gradualmente, e próprio ao ato do criar, a mente vai oferecendo inspiração através de ideias, pensamentos, sensações, memórias. Abre-se um espaço mental de brincar com as ideias, com as cores ou com as texturas, com o disparate, com o sem-sentido ou com a frustração.
Abre-se um espaço mental de contacto connosco. E a criação decorrente do processo criativo numa sessão de arte-psicoterapia, reflete-se uma imagem bidimensional. Esta representação terá a particularidade de estar imbuída de um conjunto de significações. Afinal de contas, uma imagem é um símbolo.
A criatividade é organizadora e apaziguadora. Os estados depressivos, ansiosos ou maníacos, os medos, os sonhos, as dificuldades, as emoções, i.e., os desequilíbrios mentais fazem parte do objeto estético. Muitas patologias inibem o acesso a esse espaço potencial.
Reparar na imagem ou criação implica uma focagem da nossa visão, atenção. Consoante a perspetiva, projetamos, trocamos informação com a imagem e associamos algo em detrimento de outro algo. O diálogo com a imagem ajuda a configurar uma reflexão particular. A criação surge pela mão de um criador que através de um mediador artístico representou uma coisa simbólica. Este objeto contém aspetos estéticos e simbólicos que lhe são inerentes.
Schaverein escreve sobre a vida na imagem e vida da imagem. Efetivamente o nosso atributo estereoscópico proveniente do órgão – olhos, parece ter um homólogo na nossa mente/cérebro.
Quando olhamos para uma imagem criada por nós, verificamos que há uma relação com a coisa. De admiração ou desdém, não importa. O essencial reside no interior da imagem e o que ela provoca no criador. A imagem tem vida no seu interior e podemos vislumbrá-la através da visão estereoscópica da nossa mente. Há imagens que são sentidas, i.e., que apelam a reações físicas pelo simbolismo subjacente, como o que se verifica nos sintomas fóbicos.
A profundidade simbólica que cada mente alcança ao observar uma imagem ou criação associando-a a aspetos seus, abre novos canais de informação mental e somática. A mente recebe estímulos de todas as sinapses e de toda a teia neuronal espalhada pelo nosso corpo. O processamento daí resultante pode ser tão impactante para a consciência que aquela imagem em particular torna-se talismã.
Uma imagem não vale apenas 1000 palavras, mas também sensações corporais: cheiros, sabores, toques, sons, memórias e pensamentos.
A nossa mente com atributos estereoscópicos pode mergulhar numa imagem bidimensional e atribuir-lhe uma dimensão de profundidade simbólica semelhante a uma representação 3D.
Esse olhar encontra na Imagem a metáfora perfeita. A revelação dessa constelação simbólica em terapia permite ao psicoterapeuta e ao paciente encontrarem uma linguagem própria, única e genuína. A Consciência inerente a uma Mente Criativa dota a pessoa de recursos internos capazes de trilhar a alternativa, de desenvolver um caminho diferente e de voltar a ter esperança no encontro com a felicidade, com a realização pessoal ou com uma existência de menos sofrimento.
Os neurocientistas utilizam equipamento sofisticado para saberem o que se passa no nosso cérebro, na nossa mente, em tempo real. Vários estudos têm comparado a frequência das ondas cerebrais na meditação e no processo criativo. Também eles utilizam a imagem para iluminar o seu caminho na investigação. Os Arte-Psicoterapeutas de igual modo utilizam a imagem e o processo de criação como elementos fundamentais para o diagnóstico, tratamento e prevenção. As propriedades únicas da imagem/criação, o envolvimento no processo criativo e a relação terapêutica vinculada, produzem um espaço de mudança, de maior clarividência e bem-estar mental, físico, emocional e espiritual.
Referências:
Maschio, Vieira Alexandre
– A Estereoscopia: Investigação de processos de aquisição, edição e exibição de imagens estereoscópicas em movimento. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação. Curso de pós-graduação em Desenho Industrial. 2008
Carr, Richard and Hass-Cohen, Noah
– Art Therapy and clinical Neuroscience. Jessica Kingsley Publishers. 2008
Carvalho, Ruy
– A Arte de Sonhar Ser, Fundamentos da Arte-Psicoterapia Analitica-Expressiva. Ed. ISPA 2009
Hass-Cohen, Noah
– Art Therapy and the Neuroscience of Relationships, Creativity and Resiliency: Skills and Practices. W. W. Norton Company Inc. 2015
Schaverein, Joy
– The Revealing Image. Analytical Art Psychotherapy in Theory and Practice. Jessica Kingsley Publishers. 1999
http://www.suzanneanker.com/wp-content/uploads/2011-Anker-Suzanne-Fundamentally-Human-Catalogue.pdf – acedido a 29/09/2017
https://www.laurakkerr.com/2014/05/28/neurobiology-imagery-jung/ – acedido a 29/09/2017